Imagem do perfil de Andrew Tonkin
nas redes sociais Foto: Reprodução Facebook
Em tempos de coronavírus, contato
pode desencadear grande mortandade ou mesmo dizimar populações inteiras,
sustenta PGR; religioso tem 24 horas para prestar esclarecimentos
RIO – O Ministério Público Federal (MPF) pediu
abertura de inquérito à Polícia Federal para investigar a denúncia feita por
lideranças indígenas sobre uma expedição preparada pelo missionário americano
Andrew Tonkin a terras indígenas no Vale do Javari, na Amazônia. Nesta
terça-feira, O GLOBO mostrou que representantes dos povos Marubo e Mayoruna (Matsés) tiveram acesso a
reuniões na qual religiosos estrangeiros se organizavam para seguir viagem com
a missão de contatar índios isolados na região, o que fere a política de não
contato estabelecida pela Constituição
de 1988.
A 6ª Câmara de Coordenação e
Revisão de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais deu até as 16h desta
quinta-feira para que o missionário preste esclarecimentos ao MPF. A Funai também
foi notificada para se manifestar sobre a denúncia dos indígenas da região. De
acordo com o o MPF, em tempos de coronavírus, a expedição pode representar
“grave risco à saúde dos indígenas, uma vez que são extremamente vulneráveis a doenças, podendo
seu contato desencadear grande mortandade ou mesmo dizimar populações
inteiras”.
Índios Korubo contatados em 2015:
a lei determina que iniciativas de aproximação com grupos isolados devem partir
deles próprios, cabendo ao governo federal proteger suas terras Foto:
Funai/Agência O Globo.
Deputado usa motosserra contra
bloqueio em Terra Indígena de Roraima; assista
O deputado estadual Jeferson
Alves (PTB-RR) serra o tronco e corta a corrente que bloqueava o acesso à
BR-174, onde vivem os índios Kinja, na TI Waimiri-Atroari Foto: Divulgação
‘Um índio pode morrer em 24 horas
após contrair uma gripe’, diz ex-presidente da Funai
‘Nunca vi um presidente da Funai
que não gosta de índio’, afirma subprocurador
O subprocurador-geral da
República responsável pela 6ª Câmara,
Antônio Bigonha, argumenta no ofício que além de riscos à saúde dos
índios e outras ilegalidades, a entrada
sem autorização por esses missioários em território indígena pode configurar
crime contra a saúde pública.
Andrew terá que se manifestar sobre
o conteúdo da reportagem do GLOBO e informar se tem autorização oficial para
ingresso em terra indígena, quem financia a referida expedição e, ainda, o nome
de possíveis outras pessoas envolvidas na jornada.
Questionada, a Funai diz que não
foi consultada para entrada de missionários em terras indígenas no Vale do
Javari.
“Convém ressaltar que o ingresso
em Terra Indígena sem autorização configura invasão de território da União e
tem suas consequências legais”, diz a nota do órgão.
Ao GLOBO Tonkin chamou de
“fofoca” as acusações e afirmou que as pessoas só “pensam em dinheiro”. Ele
alega que está no Iraque, mas não disse quando teria viajado e nem o motivo.
Nas redes sociais, o missionário postou imagens caminhando por uma cidade do
oriente médio. As lideranças indígenas dizem que ele mente e está em Benjamin
Constant, cidade próxima à Atalaia.
Drones, GPS
e telefone por satélite
Relatos de lideranças dos
povos Marubo e Mayoruna (Matsés) apontam
que o religioso reuniu índios convertidos e outros integrantes da organização
“Frontier International” durante as últimas semanas para fazer uma expedição ao
Igarapé Lambança, território habitado por indígenas não contatados, localizado
no interior do Vale do Javari.
Conflito por terra: Um terço dos
assassinatos de índios no Brasil é registrado no Maranhão
“Eles estão comprando lanterna e
equipamentos para tentar entrar novamente. Andrew disse que já recebeu a
autorização dos céus, lá em cima, e não tem lei maior que essa que possa
proibir a sua entrada”, revela ao GLOBO um religioso indígena que teve acesso à
reunião de missionário estrangeiro com outro pastor conhecido como Josiash
Mcintyre.
Hidroavião monomotor usado pelos missionários nos sobrevoos
às aldeias no Vale do Javari . Na foto, Wilson Kannenberg e Andrew Tonkin atrás
do indígena Foto: Facebook/Reprodução
A União dos Povos Indígenas do
Vale do Javari (Univaja) confirmou que foi avisada sobre os planos dos
missionários liderados por Tonkin.
– Eles vêm promovendo reuniões
com alguns indígenas em Atalaia do Norte, sobretudo, os catequizados, com a
finalidade de organizar uma entrada ilegal na Terra Indígena Vale do Javari –
afirma o coordenador da Univaja, Paulo Marubo.
– Já existe uma logística toda
elaborada para acessar os isolados do Lambança – afirma Marubo . – Eles têm
armas de fogo, drones, computadores, GPS e telefone por satélite.
O GLOBO apurou que eles pretendem
utilizar o mesmo hidroavião monomotor com que já fizeram outras investidas para
chegar ao povo Korubo, que habita o Igarapé Lambança. A aeronave pertenceria ao
líder religioso Wilson Kannenberg.
‘Tocar fogo’
Após a publicação da reportagem
do GLOBO, a Univaja relatou ter sofrido nesta quarta-feira ameaças de um dos
religiosos lilgados a Tonkin. “As 17:00hs o pastor Josias norte-americano
acompanhado por um jovem indígena Marubo por nome de Marcelo Marubo que reside
no BR 307, ( Maloca do Estêvão) invadiu a UNIVAJA e ameaçou a equipe da UNIVAJA
e ainda disse para os mesmos que vai tocar fogo no prédio da UNIVAJA.”
Tonkin foi denunciado ao
Ministério Público Federal (MPF), à Funai e à Polícia Federal (PF) em duas
tentativas de entrar ilegalmente em terras indígenas. No ano passado, ele
entrou sem autorização na região onde vivem os isolados perto do rio Itacoaí,
oeste do Amazonas.
– Ele pretendia fazer contato com
os isolados Korubo e foi visto em meados de setembro acompanhado de um pastor
indígena Mayouruna — afirmou ao GLOBO o coordenador da Univaja, Paulo Marubo.
Em fevereiro, O GLOBO mostrou que
a investida de evangelizadores na região já atinge 13 dos 28 povos reconhecidos
em situação de total isolamento. Além do Javari, com o registro de ameaça a 10
povos confirmados, há ainda outras ocorrências nas terras indígenas Mamoadate,
na Cabeceira do Rio Acre, e Hi-Merimã, no Rio Purus (AM).
A lei brasileira determina que
iniciativas de contato com os grupos de isolados devem partir deles próprios,
cabendo ao governo federal proteger e demarcar suas terras, não sendo permitido
o ingresso de missionários religiosos, madeireiros, garimpeiros e outras
pessoas desautorizadas nas terras indígenas.
Americano se reuniu na Funai
A Funai confirma que Tonkin já
foi chamado a prestar esclarecimentos em sua sede, em Brasília.
Ele, no entanto, nega que tenha
ido a Brasília para isso.
– Fui conversar com lideranças da
Funai sobre parcerias que podem ser feitas para trabalhar juntos, trazendo
educação e esperança para aquelas comunidades que estão sofrendo por causa de
alcoolismo, drogas, suicídio e abuso – disse ao GLOBO em fevereiro.
– Estive na capital no ano
passado se não engano era a mês de novembro por aí, conversei com Dr. Badaró,
Dr. Almeida, e Dr. Freitas. Eles me deram boas informações e orientações.
Badaró foi nomeado assessor
direto do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva. Formado em
Antropologia, ele foi indicado para acompanhar estudos e pesquisas do órgão,
incluindo as de demarcações de terras indígenas. Ele já disse em entrevista ser
contra a delimitação dessas áreas.
“Ele esteve em nossa sede tão somente
no âmbito da Ouvidoria do órgão e não foram encaminhadas ou estabelecidas
quaisquer parcerias com o Sr. Andrew Tonkin”, diz a Funai.
No site Frontier International
Mission que se intitula “um ministério batista de livre arbítrio”, cujo lema é
“conhecê-lo é fazê-lo saber”, Tonkin aparece como líder missionário.
Coronavírus é ameaça
O MPF apura ao menos 21 denúncias envolvendo missões religiosas em
Terras Indígena, entre elas casos envolvendo a Missão Novas Tribos do Brasil
(MNTB), onde atuou o ex-missionário e hoje coordenador da área de indígenas
isolados da Funai, Ricardo Lopes Dias.
Também em fevereiro, a revista
“Época” revelou que a MNTB adquiriu a compra de um helicóptero, avaliado em R$
4 milhões, para auxiliá-los na
evangelização de índios isolados.
A MNTB atua na evangelização de
índios na Amazônia desde os anos 1950. Tonkin afirma que tem ligação com a
organização religiosa, que nega. “Queremos afirmar que o missionário Andrew
Tonkin nunca fez parte do corpo de missionários da MNTB, sequer mantendo vínculo
com a missão”, afirma o presidente da organização, Edward Luz. Em nota a
entidade, diz que não trabalha com povos isolados, sem contato.
– A nossa preocupação é que em
pleno contexto de pandemia do coronavirus ainda há a insistência de grupos proselitistas
fundamentalistas atuando com esse fim, uma
atitude irresponsável e criminosa – afirma Marubo.
Nesta segunda-feira, após
recomendação do MPF, a Funai recuou da
portaria que estabelecia medidas temporárias de combate ao novo coronavírus,
que contrariava o próprio regimento do órgão ao tirar da Coordenação-Geral de
Índios Isolados a atribuição de contatar esses povos.
O MPF sustentou na recomendação
que as coordenações regionais “não têm entre suas atribuições a competência
para executar ações de contato e pós contato, nem dispõem, no seu quadro de
pessoal, de servidores com capacitação específica para lidar com as
especificidades das políticas voltadas aos povos isolados e de recente contato,
especialmente em situação de crise epidemiológica”.
Em sua publicação das medidas
temporárias de prevenção à infecção e propagação da Covid-19, o artigo 4º da
portaria determinava a suspensão de todas as atividades que implicassem no
contato com comunidades indígenas isoladas, porém, estabeleceu que essa suspensão
seria revista se tivesse autorização das coordenações regionais “caso a
atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”.
A nova portaria devolve a
atribuição de analisar situações de extrema urgência à coordenação-geral e
anula as iniciativas de contato com as comunidades indígenas isoladas. “Ficam
suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas
isoladas”.
De acordo com o MPF, uma ação de
contato por instância sem capacidade legal e técnica para tomar decisões
referentes aos povos isolados “pode agravar a exposição à Covid-19 de povos que
já têm pouca ou nenhuma capacidade de resposta imunológica ao vírus”.
Fonte:O
GLOBO/Daniel Biasetto
26/03/2020 – 09:18
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