Fazenda da pecuarista Maria Augusta da Silva Neta em Altamira, no Pará. Ao fundo, área de floresta derrubada pelo antigo proprietário, às margens de igarapé, agora em regeneração.| Foto: Divulgação/Acervo pessoal/Maria Augusta da Silva Neta
O mesmo país que nos anos 1970 e 1980 incentivou milhares de pessoas a se mudarem para a Amazônia, com o slogan “integrar para não entregar”, hoje trata muitos daqueles pioneiros e seus descendentes como foras-da-lei e indesejáveis.
Sentindo-se cada vez mais preteridos nos debates sobre a ocupação sustentável da Amazônia Legal, agropecuaristas decidiram criar o movimento Produtores Rurais Independentes da Amazônia. Dentre as prioridades do grupo está garantir assento e voz na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) do ano que vem, em Belém do Pará. Um dos líderes da associação é o advogado e produtor rural Vinícius Borba, natural de Goiás, que migrou com os pais para Araguaína aos seis anos.
“Próximo a essa COP, nós vamos realizar a COP do Agro. Seja em Belém ou em Marabá, vamos fazer um grande evento e uma carta de intenções em que pediremos a preservação ambiental, mas equilibrando as regras. Se essa proposta não for aceita, vamos ajuntar milhares de pessoas de chapéu e botina lá na porta da COP em Belém, para manifestar e mostrar nossa cara”, garante Borba.
Grupo de produtores da Amazônia tem mais liberdade para “bater de frente”
A criação de uma associação independente de produtores da Amazônia mobiliza alguns líderes já ligados a instituições tradicionais, como as federações de agricultura e sindicatos do sistema CNA. Contudo, Maria Augusta da Silva Neta, presidente do Sindicato Rural de Altamira e diretora da Associação de Pecuaristas do Pará (Acripará), diz que o novo movimento terá mais liberdade de atuação.
“As grandes federações não podem bater de frente, não podem apresentar demandas mais acirradas, devido a questões políticas. E esse é um momento importante dado o comprometimento do estado com a questão ambiental”, diz a produtora.
“Temos um governador [Hélder Barbalho, MDB] que se comprometeu a estar com o gado rastreado até o final de 2025. A gente entende que essa data é impossível, porque o estado encontra-se travado na questão ambiental e fundiária. Os governos pulam essas etapas e querem implantar a rastreabilidade sem cumprir o dever de casa”, acrescenta.
Há 40 anos, produtores eram multados por não abrirem suas áreas e por deixarem de cumprir a função social da terra. De lá para cá, a situação se inverteu. Hoje qualquer conversão para uso agropecuário, mesmo dentro do limite legal de 20% da propriedade, é passível de multa e embargo da produção caso não tenha havido licença específica para desmatamento.
Essas licenças, contudo, são raras e difíceis de obter, porque a maioria dos produtores não tem o título de suas terras. Assim, sem titulação dos imóveis rurais, a própria ideia de rastreabilidade de todo o gado paraense até 2026 estaria comprometida.
Rastreabilidade esbarra na falta de titulação das propriedades
“Eu sou a favor da rastreabilidade de uma outra maneira. Porque eu estou fazendo certo, criando um boi na Amazônia, preservando 80% da minha propriedade. Então, se estou fazendo correto, o meu gado tem que ter um custo diferenciado. O cara que está fazendo tudo errado, tem que se enquadrar, não pode ser assim. Como não sabemos quem está na terra, o governo vai prejudicar onde consegue chegar, que é quem está tentando fazer o correto”, diz Maria Augusta.
Sem avanço na regularização fundiária, mantém-se um círculo vicioso em que nem sequer os assentados da reforma agrária têm direito à propriedade. O deputado Alexandre Guimarães (Republicanos-TO) aponta que do total de 9.469 assentamentos feitos na Amazônia desde 1970, apenas 5% foram consolidados. E somente 6% das famílias receberam título definitivo da terra.
As tentativas de legalização e regularização enfrentam forte oposição de viés esquerdista, que classifica tudo como “projetos de grilagem”. A não titulação está associada à falta de estrutura dos governos para analisar milhares de processos já georreferenciados. Em muitos casos, essa morosidade também envolve receio dos servidores públicos de reconhecer a titularidade de uma área e, depois, serem responsabilizados por haver sobreposição.
Dessa forma, em muitas áreas não regularizadas, persiste uma zona cinzenta, de insegurança jurídica, em que a ausência do Estado e do ordenamento da posse da terra favorece a ação, por vezes violenta, de grileiros e invasores.
Vinícius Borba, advogado e produtor rural, lidera associação independente de agricultores da Amazônia.| Divulgação/Acervo pessoal/Vinicius Borba
Dificuldade para licenças de supressão de vegetação nativa
“Não defendemos criminosos. Quem desmata de forma criminosa, por especulação imobiliária, não faz parte do nosso meio. Quem faz parte do nosso meio é aquele cara que é errado, sim, porque desmatou sem uma licença. Mas onde é que vai conseguir uma licença?”, questiona Vinícius Borba.
Quando o Código Florestal foi aprovado, em 2012, as regras para regularização dos passivos ambientais retroagiam a 2008. Dali para frente, os governos teriam que validar o Cadastro Ambiental Rural dos produtores e o Plano de Regularização Ambiental, para aqueles que tivessem áreas a ser recuperadas. Mas nenhum estado da federação conseguiu concluir essas etapas até hoje.
Isso estaria agravando a insegurança jurídica e os conflitos agrários na Amazônia. Para Borba, é impossível haver solução ambiental enquanto não for resolvida a regularização fundiária, ou seja, a efetivação da posse da terra. “Pega essas propriedades, no estágio que está de ocupação, de antropização, aceita do jeito que está e dá escritura para esse cara. Por que daí você vai vincular a um CPF”, defende.
Regularização fundiária ajudaria a separar o joio do trigo
A situação seria comparável à de um carro regularizado e outro sem documento. “Quando a pessoa vai cometer um crime, ela vai no outro carro, porque o nome dela não está lá. Então, vincula o CPF, dá o título, resolve a questão ambiental. Feito isso, você consegue separar o joio do trigo. Aí quem insistiu em desmatar, você pode colocar pena de prisão para ele, porque é minoria”, diz Borba.
Ele reconhece, contudo, que há fortes interesses para impedir que essa pauta avance. “Por que não vão fazer? Você concorda comigo que existe uma galinha de ovos de ouro, e se eu fizer isso eu mato ela? Por que se eu der documento para todo mundo da Amazônia, igual no Sul e Sudeste, como é que as ONGs e a Marina Silva vão falar que invasores e grileiros estão desmatando a Amazônia?”, indaga.
Para utilizar livremente áreas antropizadas (abertas) antes de 2008, e terem direito a crédito bancário e acesso a políticas públicas, os produtores precisam passar pela validação do CAR e pela adesão ao PRA.
Painel prova interesse dos produtores da Amazônia – e lentidão do governo – na regularização das terras
Uma prova de que são os governos – e não os produtores – que impedem o avanço da regularização ambiental e fundiária está em um painel interativo lançado pelo Serviço Florestal Brasileiro, no mês passado.
Nos dados gerais da Amazônia, o painel mostra que 592 mil propriedades (64,7% do total) manifestaram formalmente o interesse em aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Os governos estaduais, contudo, conseguiram concluir menos de 10% das análises solicitadas, ou 58.647 cadastros. Sem PRA, os produtores não conseguem licença para suas atividades. E levam multas a cada supressão de área vegetal, mesmo nos limites do Código Florestal.
“O governo vai multando, multando e multando, mas não desembarga e nem analisa os processos. Hoje, teoricamente, todas essas propriedades vão sair do mercado formal pelo Termo de Ajuste de Conduta da Carne”, alerta Borba.
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