Por que o maior programa para reduzir o caos
fundiário da Amazônia – e evitar mortes e desmatamento – só cumpriu 15% do
objetivo
Entrega de títulos de terra a agricultores em
Porto Velho, Rondônia. Depois de cinco anos, o programa só regularizou 15% das
terras que planejava legalizar (Foto: Naiara Pontes/MDA).
Uma das maiores tragédias da Amazônia é o
caos fundiário na região. A floresta poderia gerar muita riqueza de forma
sustentável, com a produção de madeira, de essências ou frutos, com turismo ou
até com energia e mineração. Mas nada disso pode ocorrer de forma organizada e
controlada quando não há segurança sobre quem é o dono e responsável pela
terra. Um estudo de 2008 do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia
(Imazon) mostrou que 32% das terras na região não tinham propriedade definida.
A confusão fundiária na Amazônia é uma
herança histórica. São quatro séculos de ocupação territorial desordenada.
Desde a política de distribuição das sesmarias do século XIX, a aquisição de
terras na Amazônia tem sido feita por meio de posses. Os ciclos da borracha, a
colonização do governo militar, a corrida do ouro nos anos 1980 e agora a
expansão da pecuária envolveram apropriação irregular de terra pública.
O roubo de terra, batizado de grilagem,
começa com a ação de madeireiras clandestinas. Elas retiram da floresta as
árvores de maior valor comercial. Essa exploração, sozinha, não destrói a
floresta, mas deixa a mata mais pobre. A terra sem dono atrai especuladores,
que usam o dinheiro da madeira e do carvão para derrubar a mata, plantar capim
e colocar gado na área desmatada. A pecuária cria uma aparência de terra
produtiva e permite a falsificação de documentos de posse. Sem propriedade
definida, são fadadas ao fracasso as tentativas de criar um modelo de economia
sustentável na Amazônia.
Colocar ordem na floresta não tem sido tarefa
fácil. Uma das esperanças é o programa Terra Legal, lançado em 2009 pelo
governo federal. Quando surgiu, ele estava concentrado em 43 municípios
amazônicos. Tinha como meta inicial entregar títulos de terra a 150 mil
posseiros que ocuparam áreas públicas federais não destinadas a eles.
Diferentemente dos grileiros, os posseiros são pequenos produtores,
extrativistas, que usam a terra para plantar, sem intenção especulativa. O
Terra Legal vem sendo executado em fases. Elas começam com identificação nos
cartórios das glebas públicas, seguida pela medição com satélites
(georreferenciamento) das terras, pela identificação dos ocupantes e pela
definição do que fazer com a área. Em consulta a órgãos como a Funai, o Incra e
o Ministério do Meio Ambiente, os agentes do programa determinam se é possível
dar o título a quem lá cultiva ou faz extrativismo.
De um total de 113 milhões de hectares de
glebas federais na Amazônia, há 55 milhões de hectares em situação indefinida.
É o equivalente a Minas Gerais. Eles podem ser destinados a particulares ou a
uso público, como assentamentos de reforma agrária, áreas urbanas, terras
indígenas e unidades de conservação. Qualquer destino desses é melhor que o
limbo legal, com a terra vulnerável à grilagem.
Desde o lançamento do Terra Legal, foram
destinados à regularização 8 milhões de hectares. “Esses títulos beneficiaram
13 mil famílias na área rural e outros milhares em áreas urbanas, além de
garantir áreas de preservação ambiental e proteção a populações tradicionais”,
afirma o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), executor do programa, em
nota a ÉPOCA. Os resultados ficaram aquém da expectativa. O programa deveria
ter regularizado tudo em cinco anos. Agora, o prazo foi prorrogado para mais
cinco. “O programa avançou na identificação das terras nos cartórios e no
mapeamento por satélite. Mas a titulação ainda é lenta”, diz Brenda Brito,
pesquisadora da Imazon.
Os problemas começam já na identificação das
terras públicas federais nos cartórios. Muitos registros de imóveis rurais são
imprecisos. Outro problema é o número de títulos falsos emitidos na Amazônia. É
comum encontrar dois ou três títulos emitidos para uma mesma terra. Em 2010, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou o cancelamento de mais de 5 mil
títulos falsos de terras, registrados em cartório, só no Pará.
Enquanto a terra não é regularizada, a
indefinição causa conflitos e estimula o desmatamento. O Pará é o campeão de
mortes por conflitos agrários no Brasil. Foram seis assassinatos em 2013, de um
total de 34 casos em todo o Brasil. Em 2010, 18 mortes no Pará, de 34 no país.
Brenda estima que 71% da área desmatada no Pará até 2011, um total de 175.000
quilômetros quadrados, estava sem definição fundiária. É o equivalente a quatro
vezes o Estado do Rio de Janeiro. “É difícil pensar em política ambiental sem
regularizar essas áreas”, diz ela.
Entre os Estados da Amazônia Legal, o Pará
também vive o maior caos fundiário. Um estudo do Imazon, de 2012, mostrou que a
titularidade é indefinida em 39% do território, embora haja processos em
andamento para regularização, tanto no âmbito do Terra Legal quanto no programa
estadual de regularização fundiária, do Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
“O sistema de controle de terras ainda é deficiente no Brasil. No Pará, a
maioria dos títulos de posse nunca foi legitimada, nem pelo Estado, nem pela
União”, diz José Heder Benatti, da Universidade Federal do Pará.
O mais recente relatório do programa Terra
Legal afirma que 43% das glebas públicas no Estado foram mapeadas por
satélites. Apenas 4% dos títulos correspondentes já foram emitidos. Para
cumprir sua meta nos próximos cinco anos, o Terra Legal precisaria emitir nada
menos que 68.414 títulos de propriedade no Pará. O último relatório do Iterpa,
referente ao ano de 2013, mostra que o Pará reuniu 535.826 hectares de terras
para regularização fundiária e emitiu 778 títulos de propriedade, a maioria
(663) para pequenos e médios produtores. “Os resultados dos dois programas são
tímidos, pois não há articulação e cruzamento de dados entre os órgãos fundiários
estadual e federal. Isso contribui para que a grilagem não tenha fim. Ainda
mais diante da especulação imobiliária, gerada pelas grandes obras de
infraestrutura”, afirma Benatti.
O programa precisa correr. A Amazônia vive
hoje uma repetição da década de 1970, quando o incentivo à ocupação com base na
migração e na abertura de grandes estradas estimulou a especulação e a
falsificação de títulos. Na ocasião, o objetivo dos grileiros era usar os
papéis falsos para obter financiamentos bancários do governo federal. “Hoje,
isso se repete, com obras como hidrelétricas e estradas e na expansão da
pecuária”, diz Ricardo Mello, coordenador adjunto do Programa Amazônia da ONG
WWF Brasil. O WWF tem trabalhado com programas de desenvolvimento sustentável
de cadeias extrativistas, justamente em torno dessas áreas de risco, como na
área de influência da BR-364, no Acre, e em torno do Parque Nacional do
Juruena, na divisa entre Amazonas e Mato Grosso. A região poderá receber as
barragens da hidrelétrica de São Simão Alto, na bacia do Rio Tapajós. Se o
anúncio das obras também viesse com a regularização das terras, o impacto seria
menor.
21 de outubro de 2014
Por: Andrea Vialli
Fonte: Revista Época
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